Se você já escutou que o futuro dos transportes pesados será movido a gás, é porque esse futuro já está começando a acontecer – e com sotaque brasileiro. Mas não, não estamos falando só do tradicional GNV que abastece táxis e frotas urbanas há décadas. Estamos falando também do biometano, o “irmão verde” do GNV, que tem ganhado espaço como um combustível renovável, produzido a partir de resíduos orgânicos como dejetos de animais, esgoto e restos agroindustriais.
Mas e aí? GNV ou biometano? Qual é melhor? Preciso escolher um lado nessa disputa? A resposta pode te surpreender: não se trata de escolher, mas de entender como os dois se complementam.
Neste artigo, vamos te explicar por que a convivência entre GNV e biometano é não só possível, como estrategicamente necessária para a transição energética no setor de transportes no Brasil.
O que é biometano (e por que ele é tão promissor)?
O biometano é um gás obtido a partir do biogás, que por sua vez vem da decomposição de matéria orgânica em biodigestores ou capturado em aterros sanitários. Depois de passar por um processo de purificação, o biogás vira biometano, com qualidade equivalente ao gás natural fóssil – aquele mesmo usado como GNV.
A grande diferença? O biometano é 100% renovável, carbono neutro e nacional. Ele pode ser produzido em fazendas, indústrias e aterros sanitários espalhados pelo Brasil. O país tem um potencial gigantesco para essa produção, especialmente nas regiões com forte presença agropecuária, como o Sul e o Centro-Oeste.
E o que garante que eles são equivalentes? A própria legislação brasileira reconhece isso: a Lei Federal nº 14.134/2021, que institui a Nova Lei do Gás, estabelece que o biometano e o gás natural veicular (GNV) são intercambiáveis, ou seja, suas moléculas são equivalentes em termos de poder calorífico e aplicação energética. Isso significa que um motor a gás pode utilizar qualquer um dos dois, sem necessidade de adaptação, o que facilita a integração desses combustíveis na matriz logística nacional.
E o GNV, ainda faz sentido?
Sim, e muito. O GNV (Gás Natural Veicular) é um combustível consolidado, com uma infraestrutura extensa de distribuição, especialmente em regiões urbanas e litorâneas. Ele é fóssil, é verdade, mas ainda emite menos poluentes que a gasolina ou o diesel, e tem se mantido como uma opção econômica para o transporte.
Muitos caminhoneiros, taxistas e empresas de logística seguem apostando no GNV por sua disponibilidade confiável, especialmente em rotas de longa distância.
Dois combustíveis, duas realidades – e uma mesma estrada
É comum ver discursos que tratam o GNV e o biometano como rivais. Mas essa visão é limitada. Na prática, eles atuam em camadas diferentes e complementares da transição energética.
Vamos simplificar?
- O biometano tem tudo para abastecer frotas locais, principalmente próximas das unidades produtoras, como granjas, usinas ou aterros. O abastecimento pode ser feito diretamente no ponto de produção, sem depender da rede de gasodutos.
- O GNV garante o abastecimento firme e contínuo em regiões onde o biometano ainda não chegou, ou em pontos estratégicos ao longo de grandes rotas logísticas.
Não se trata de competir, mas de criar um ecossistema inteligente de abastecimento.
A teoria dos Corredores Energéticos
Para ilustrar essa lógica, vale a pena apresentar a Teoria dos Corredores Energéticos, defendida por Cícero Bley Jr., uma das maiores referências em biogás no Brasil, fundador da Bley Energia sediada no Biopark, em Toledo (PR).
Segundo ele, não faz sentido esperar que o biometano seja injetado na rede e chegue a todos os cantos do país por gasodutos. Em vez disso, o mais inteligente é criar corredores logísticos abastecidos por bases locais de biometano, estrategicamente posicionadas nas rotas de transporte mais importantes.
Essas bases funcionam como postos de abastecimento regionais, que produzem o biometano nas diversas fontes de proteína animal e vegetal de produtores próximos, em forma comprimida. Assim, o caminhoneiro pode abastecer na origem da carga ou em pontos-chave da rota.
Já o GNV, por estar disponível em gasodutos e postos urbanos, continua sendo a garantia de abastecimento constante, funcionando como uma malha de segurança para as regiões ainda não cobertas pelo biometano.
É uma lógica de complementaridade descentralizada. Cada um cumpre seu papel. Juntos, ampliam o alcance de uma logística verde.
O que isso muda na prática?
Imagine um caminhão saindo de Toledo (PR), região referência em produção de biometano, carregando suínos processados para o Porto de Paranaguá (PR).
- Ele pode ser abastecido com biometano local logo na origem, em uma base instalada próxima à granja ou agroindústria.
- Durante a viagem, caso precise reabastecer, pode contar com postos convencionais de GNV em cidades como Curitiba ou Ponta Grossa.
- O ciclo de transporte se fecha de forma limpa, econômica e eficiente – sem depender de longos dutos, apenas de inteligência logística.
Esse modelo pode ser replicado em várias rotas do país. O biometano ganha território a partir das zonas produtoras, enquanto o GNV mantém a rede coesa e funcional nos centros urbanos e nas estradas.
Por que isso é essencial para o Brasil?
Porque o Brasil tem características únicas: somos gigantes em produção agropecuária, temos regiões vastas sem acesso a dutos e precisamos urgentemente reduzir as emissões do setor de transportes – um dos mais poluentes do país.
A aposta em bases locais de abastecimento de biometano, aliadas à malha já existente de GNV, descentraliza a matriz energética e acelera a transição sem exigir infraestrutura pesada de transporte de gás.
Além disso, isso empodera comunidades rurais, que deixam de ser apenas fornecedoras de matéria-prima e passam a gerar, distribuir e vender energia limpa.
Mas e o custo?
O biometano ainda tem um custo mais elevado do que o GNV, principalmente por conta da escala e da logística inicial. Mas essa diferença tende a diminuir com o avanço tecnológico, incentivos públicos e aumento da produção.
Por outro lado, o biometano já se mostra mais barato que o diesel em várias regiões, com vantagens ambientais claras. Empresas que buscam certificações ESG ou redução de carbono já estão fazendo essa migração.
A convivência com o GNV permite que a mudança ocorra de forma gradual e estratégica, sem rupturas, e com segurança para transportadores e frotistas.
O papel da Energycoop nessa transição
Aqui na Energycoop, acreditamos nesse modelo de futuro descentralizado, limpo e colaborativo. Trabalhamos para fomentar o uso do biogás e do biometano nas regiões produtoras, criando parcerias locais, apoiando projetos, promovendo educação e estruturando modelos cooperativos viáveis.
A transição energética não precisa esperar infraestrutura estatal. Ela começa com inteligência territorial, com base no que já temos: resíduos, gente capacitada e vontade de mudar.
O GNV e o biometano não são inimigos. São aliados essenciais na construção de uma logística mais limpa no Brasil. Enquanto o GNV garante o presente, o biometano constrói o futuro – e os dois, juntos, pavimentam os caminhos dessa transição.
Não se trata de uma escolha entre um ou outro, mas de usar cada um onde faz mais sentido. E fazer isso com estratégia, com base local, e com visão de longo prazo.
Porque no final das contas, o que move o caminhão também move o Brasil. E chegou a hora de movermos com mais inteligência e sustentabilidade.